“Com efeito, é possível falar-se não em cristianismo, mas em cristianismos.”
Luis Eduardo Souza Costa
A afirmação do pesquisador Lair Amaro dos Santos Faria, mestre em História, professor da UFRJ e autor do livro “‘Quem vos ouve, ouve a mim’ – Oralidade e Memória nos Cristianismos Originários (Ed. Klíne) “, expõe uma questão interessante a respeito da Bíblia: o livro sagrado, em muitos aspectos, contêm passagens que foram coletadas da tradição oral, que, por sua vez, sobrevivia à custa da memória de seus multiplicadores. Portanto, até que ponto os fatos narrados na Bíblia são historicamente válidos? A vida e as palavras de Jesus correspondem de fato ao que está escrito ou foi ajustada em nome de uma visão predominante do Cristianismo, em detrimento de outras correntes? Essas e outras questões são tratadas pelo Professor Lair em entrevista exclusiva ao Blog Desburocratizando.
1. Muitos estudiosos têm adotado uma postura crítica sobre os relatos (supostamente) históricos contidos na Bíblia. Dentro dessa lógica, seria lícito supor que nem todos os livros bíblicos foram de fato escritos por aqueles que os nomeiam?
No que tange à autoria dos textos que compõem a Bíblia cristã (Antigo e Novo Testamentos), cumpre frisar que não há mais espaço para “suposições”. Existem poucas provas reais das tradicionais atribuições de autoria e, por outro lado, inúmeras evidências de que muitas dessas atribuições estão erradas. Isso não é fruto de um pensamento meramente destrutivo, mas conseqüência de análises embasadas por anos de estudos. O chamado Novo Testamento contém 27 livros e, segundo a maioria dos especialistas, apenas oito certamente podem ser considerados escritos pelo autor que o nomeia: as sete epístolas de Paulo (Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Filipenses, 1 Tessalonicenses e Filemon) e o Apocalipse de João (ressalvando-se que esse João não se trata do mesmo autor do evangelho e das epístolas que carregam o nome). Os outros 19 livros podem ser subdivididos em três categorias: (a) textos erradamente atribuídos, isto é, atribuições equivocadas de autoria como os evangelhos, Ato dos Apóstolos e a Epístola aos Hebreus; (b) textos homônimos, ou seja, livros cujo autor tem nome idêntico a alguém famoso, como, por exemplo, as epístolas ditas católicas ou universais que trazem os nomes de Tiago, Judas, Pedro; (c) textos pseudepigráficos, quer dizer, escritos assinados com nomes de pessoas que não o escreveram. Trata-se de uma fraude intencional, muito comum na Antiguidade, e, dentre eles, inclua-se as outras cartas de Paulo não mencionadas acima (Efésios, Colossenses, Timóteo, Tito e 2 Tessalonicenses).
2. Acredita-se que a maioria dos evangelhos tenham sido escritos muito tempo depois dos fatos narrados. Até que ponto a recuperação desses relatos, baseados na tradição oral, e, portanto, sujeita a distorções e omissões, permitem fazer da Bíblia uma fonte fidedigna para recompormos, por exemplo, a vida de Jesus?
A pesquisa acadêmica acerca da vida de Jesus de Nazaré vem demonstrando que vários elementos precisam ser levados em consideração antes que se afirme, peremptoriamente, que essa ou aquela fala ou ações atribuídas a Jesus ou aos personagens que giram em torno de sua carreira pública constituem o registro fiel do passado. Os textos neotestamentários possuem “camadas”, ou seja, evangelhos como o de João, por exemplo, têm partes escritas em momentos distintos e que foram agregadas com o decorrer do tempo visando responder a certas críticas que emergiam ou para ajustar e negociar o passado com o presente das comunidades que elaboraram esses livros. O decano dos estudos neotestamentários, o falecido Raymond E. Brown, afirmava que uma parte ínfima dos evangelhos remonta à época de Jesus e que a maior parte do que se encontra escrito nesses evangelhos reflete a situação, os questionamentos, as lutas, as incertezas, as esperanças dos autores dos textos. Cumpre observar, por exemplo, que os seguidores de Jesus que permaneceram ligados ao seu projeto depois de sua execução sumária pelas autoridades romanas certamente passaram por experiências que ele próprio não precisou passar. Não há evidências de que Jesus de Nazaré foi defrontado com a questão da admissão de não-judeus ao seu movimento, mas abundam indícios que a expansão dos grupos para além das fronteiras da Palestina romana forçosamente exigiu ressignificações expressivas de seus ditos e, mais que isso, a criação de falas novas que dessem conta do momento. Com efeito, várias dessas falas construídas ao longo dos anos que se seguiram à sua morte foram incorporadas ao conjunto de memórias e autenticadas como provenientes de Jesus de Nazaré. O esforço dos pesquisadores concentra-se em filtrar esses ditos e, por meio de uma metodologia adequada, distinguir o que provavelmente ele disse e fez do que dificilmente ele disse e fez.
3. O fato de o Novo Testamento afirmar que Jesus nasceu em Belém (contra algumas evidências de que seria natural de Nazaré) pode ter relação com as antigas profecias que indicavam que dessa cidade viria o salvador?
Gostaria de fazer uma pequena ressalva antes de tratar diretamente da questão proposta. O chamado “Novo Testamento” é composto de 27 “livros” e desses, apenas dois descrevem as circunstâncias em torno da natividade de Jesus. Portanto, minha ressalva seria no sentido de apontar que não é o Novo Testamento que afirma isso ou aquilo a respeito de Jesus, mas esse ou aquele livro que certos indivíduos, em dado momento histórico, resolveram que deveria ser parte integrante do “Novo Testamento”.
Feita a ressalva, cumpre sublinhar que havia uma forte preocupação em certos círculos de seguidores do movimento de Jesus – que ainda não podemos chamar de “cristãos” – em justificar para si a escolha que fizeram. Que escolha é essa de que estamos falando? A opção por acreditar e defender que Jesus de Nazaré era um caminho viável para Deus. Além disso, também existia a necessidade de oferecer uma justificativa persuasiva aos que não estavam convencidos de que Jesus era aquele que “cumpria as profecias”. Por conseguinte, à proporção que há livros canônicos (evangelhos de Marcos e de João, as epístolas católicas, por exemplo) e livros não-canônicos (Evangelho de Tomé) que nada comentam sobre o local de nascimento de Jesus, podemos postular que essa foi uma questão pontual que emergiu em momentos e em grupos específicos.
Esses grupos, portanto, precisavam legitimar sua nova opção. Um dos meios encontrados foi buscar nas Escrituras profecias que se ajustassem às suas necessidades apologéticas. Mais do que ajustar-se, algumas profecias foram “ajustadas” para dar a impressão que realmente faziam alusão a Jesus. O nascimento em Belém é, definitivamente, um desses casos.
Se pensarmos equilibradamente, convém perguntar: quantas crianças nasciam por ano em Belém? Se analisarmos friamente os textos do Novo Testamento, podemos indagar: se era um fato o nascimento de Jesus em Belém, quantas vezes, ao longo de sua carreira pública, esse dado foi usado como elemento atestador de sua condição como “salvador”? Vejam o que está escrito em João 1:45-49.
4. Uma questão relevante sobre o Novo Testamento é que boa parte foi escrita sob o impacto da destruição do Templo de Jerusalém, ocorrido em 70 DC, por ordem do Imperador Vespesiano. Na sua opinião, qual a importância desse fato, e do espírito de ódio aos romanos que se seguiu, na composição dos livros?
O fato foi importante à medida que as comunidades fundadas em torno da memória e da crença em Jesus como o messias eram constituídas de judeus e de judias. Implica dizer, em maior ou menor grau, o Templo de Jerusalém tinha uma centralidade na vida deles. Era, para muitos, a morada de Deus na Terra. Sua destruição representou um forte baque em suas certezas. Os historiadores aventam que muitos, ao verem a ruína do Templo, devem ter duvidado que Jesus teria sido realmente o messias e tiveram sua fé posta à prova. Nesse sentido, suas concepções precisaram ser retrabalhadas à luz dos acontecimentos. Se a morte de Jesus por crucificação foi traumática, a queda do Templo foi outra grande decepção para eles. Segundo a visão que se tinha na época, quando um Templo era destruído, significava que o Deus daquela construção já não mais vivia ali. De alguma maneira, ver ou tomar conhecimento da queda do Templo impactou fortemente todos os judeus que tinham algum tipo de vínculo com aquela instituição judaica.
5. O senhor acredita que os evangelhos excluídos pela Igreja durante a edição do Novo Testamento, na Idade Média, possam nos trazer alguma novidade sobre a interpretação dos relatos bíblicos?
Cada texto precisa ser analisado com bastante atenção e rigor metodológico. O aspecto mais relevante, em minha opinião, é que eles atestam a pluralidade de interpretações desenvolvidas nas primeiras décadas após a morte de Jesus. Essa seria a maior novidade. O cenário dentro do qual formou-se o cristianismo revelou-se diversificado e não necessariamente harmônico. Com efeito, é possível falar-se não em cristianismo, mas em cristianismos. Cristianismos que, sob certos aspectos, rivalizavam entre si. Essa é outra novidade que não pode ser ignorada.