Literatura
Morte sob a lona
Luis Eduardo Souza Costa
Lamentavelmente, a tragédia do último dia 25 de janeiro no centro da capital carioca, vem se juntar a um histórico macabro de acidentes (de causas naturais ou não) que atormentam a memória da cidade e do estado. Em outubro de 2011, um vazamento de gás, ocorrido em um restaurante da Praça Tiradentes (região bem próxima ao recente desabamento dos três edifícios) deixou um saldo de três mortos e dezessete feridos. Em janeiro do mesmo ano, a Região Serrana do estado contabilizou cerca de 900 vítimas em função dos deslizamentos ocasionados pelas chuvas incessantes que atingiram aquela área.
No Morro do Bumba, em Niterói, 276 vidas foram perdidas em abril de 2010. Mais uma vez, a combinação de fortes chuvas com a inadequação do terreno para a construção de moradias (o local era um antigo aterro sanitário) foi o estopim da tragédia.
Voltando ao centro do Rio, não se pode esquecer o incêndio do Edifício Andorinha, em 17 de fevereiro de 1986, com um saldo de 20 mortos e cerca de 50 feridos. Na época, ficou constatado que o prédio não atendia aos requerimentos mínimos do Código de Segurança contra incêndios. A construção foi demolida em 1996.
Quinze anos antes, parte do Elevado Paulo de Frontin, na altura da Rua Haddock Lobo, no Estácio, desabou matando 28 pessoas e ferindo 30. O viaduto estava em construção e caiu após um caminhão-betoneira, carregado de cimento e pedras, ter passado sobre a pista.
Todos esses tristes eventos, em maior ou menor grau, representaram tragédias que chocaram o país e destruíram inúmeras famílias. No entanto, uma delas, ocorrida em Niterói nos anos 60, pode ser considerada emblemática como uma sombra permanente na memória coletiva.
Em 17 de dezembro de 1961, um domingo, o Gran Circo Norte Americano iniciava sua matinê com cerca de 3000 pessoas, em sua maioria crianças, na platéia. Faltando poucos minutos para o fim do espetáculo, realizado sobre um calor sufocante, uma trapezista dava o grito de alerta que pôs a multidão em pânico. Ao potente grito de fogo, seguiu-se um tumulto generalizado, em que a maioria dos espectadores tentava sair pela entrada principal do circo, que não comportava o volume de pessoas em desespero. Como resultado, muita gente foi pisoteada, enquanto a frágil lona (de material inflamável) sucumbia ante a força das chamas. Em poucos minutos, a estrutura ruiu, caindo sobre todos que tentavam em vão escapar daquele inferno. Em menos de vinte minutos, tudo estava destruído, centenas de pessoas mortas, um incontável número de feridos e um sofrimento eterno pairando sobre a cidade sorriso.
Essa história foi resgatada pelo jornalista Mauro Ventura, no recém lançado “O Espetáculo Mais Triste da Terra” (Companhia das Letras), obra que conta todo o drama que comoveu o país.
O autor investiga aspectos pouco lembrados da tragédia, como o fato de o Hospital Antônio Pedro, o principal da cidade, estar fechado na ocasião, em função de suas precárias condições de funcionamento. Teve que ser reaberto em caráter de emergência, sendo que os feridos foram transferidos para todas as instituições de saúde da região e das cidades próximas. O livro reconta em detalhes o mutirão de médicos , enfermeiros e demais profissionais de saúde, que se mobilizaram na tentativa de salvar os feridos, muitos deles, com queimaduras em mais de 80 % do corpo. Vale ressaltar, que o incêndio foi o principal motivador do reconhecimento da Cirurgia Plástica como especialidade socialmente relevante da medicina. Foi a partir dali, que ganhou notoriedade o nome do Dr. Ivo Pitanguy.
Como não poderia deixar de ser, o cerne da narrativa são as tragédias pessoais. Os personagens que, muitas vezes por um pequeno detalhe fruto do acaso, deixaram de comparecer ao espetáculo e se salvaram, ou ainda, não planejavam estar ali e foram tragados pelo destino. Dos sobreviventes, destacam-se as histórias de Lenir Ferreira e Marlene Serrado, que perderam suas famílias no incêndio e sobreviveram milagrosamente, após longos meses de internação, durante os quais foram desenganadas pelos médicos, além do fotógrafo Luiz Gomes da Silva, vulgo Luiz Churrasquinho, que, com inacreditável bom humor desdenha das marcas de queimaduras que carrega há mais de 50 anos.
Embora o inquérito policial tenha apontado um culpado, o desempregado Dequinha, que confessou ser o autor do incêndio em uma vingança contra o porteiro do circo, que o havia barrado na entrada. Há até hoje, sérias controvérsias sobre a origem das chamas. Muitos acreditam que Dequinha (que tinha baixo desenvolvimento mental) foi forçado à confissão como uma forma de resposta das autoridades ao clamor popular, que exigia uma explicação para o ocorrido. Não são poucos os que afirmam que as condições das instalações elétricas eram precárias e teriam sido a causa do fogo.O fato é que Dequinha cumpriu parte da pena. Foi solto em 1973 e assassinado pouco depois.
O trauma foi tão grande que somente 14 anos depois, um circo voltaria à Niterói. O local onde se deu o incêndio ficou abandonado por 7 anos, quando o espaço serviu de sede para a construção da Policlínica Militar de Niterói. Antes (de 62 a 65), o terreno vazio e ainda com resquícios da tragédia, foi ocupado por aquele que se tornaria o personagem símbolo do incêndio: o ex-comerciante José Datrino, que ao ouvir a notícia, teve uma visão mística, abandonou seu próspero negócio, a família e os amigos e assumiu a identidade que o deixaria famoso pelos 35 anos seguintes, Profeta Gentileza.
Não há consenso sobre o total de mortos. Estima-se de 300 até cerca de 1000 vítimas. A única certeza é que, apesar da dor da lembrança, o incêndio do Gran Circo merece ser recordado como um monumento à solidariedade dos inúmeros voluntários que se doaram ao próximo, à garra dos sobreviventes que reconstruíram suas vidas ou ainda, à memória de tantos inocentes que sucumbiram naquela tarde domingo.