Espiritualidade

Evangelho do 16º domingo tempo comum – Lc 10,38-42

Pe. Cleneu Magri - Vigário da Paróquia Sangue de Cristo

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A ação passa-se em Betânia, uma pequena aldeia situada na encosta oriental do Monte das Oliveiras, acerca de 3 quilômetros de Jerusalém. Continuamos o itinerário do “caminho de Jerusalém”, durante o qual Jesus vai revelando aos seus discípulos os projetos do Pai e os vai preparando para o testemunho do Reino.

Estamos no contexto de um banquete. Não se diz se havia muitos ou poucos convidados; o que se diz é que uma das irmãs (Marta) andava atarefada “com muito serviço” (v. 40), enquanto a outra (Maria) “sentada aos pés de Jesus, ouvia a sua Palavra” (v. 39). Marta, naturalmente, não se conformou com a situação e queixa-se a Jesus pela indiferença da irmã. A resposta de Jesus (vs. 41-42) constitui o centro do relato e dá-nos o sentido da catequese que, com este episódio, Lucas nos quer apresentar: a Palavra de Jesus deve estar acima de qualquer outro interesse.

Há, neste texto, um pormenor que é preciso pôr em relevo. Diz respeito à “posição” de Maria: “sentada aos pés de Jesus”. É a posição típica de um discípulo diante do seu mestre (cf. Lc 8,35; Act 22,3). É uma situação surpreendente, num contexto sociológico em que as mulheres tinham um estatuto de subalternidade e viam limitados alguns dos seus direitos religiosos e sociais; por isso, nenhum “rabbi” da época se dignava aceitar uma mulher no grupo dos discípulos que se sentavam aos seus pés para escutar as suas lições. Lucas (que, na sua obra, procura dizer que Jesus veio libertar e salvar os que eram oprimidos e escravizados), mostra, neste episódio, que Jesus não faz qualquer discriminação: o fato decisivo para ser seu discípulo é estar disposto a escutar a sua Palavra.


Muitas vezes, este episódio foi lido à luz da oposição entre ação e contemplação; no entanto, não é bem isso que está em cena… Lucas, nesta catequese, explica que a vida contemplativa é superior à vida ativa; a escuta da Palavra de Jesus é o mais importante para a vida do crente, pois é o ponto de partida da caminhada da fé. Isto não significa que o “fazer coisas”, que o “servir os irmãos” não seja importante; mas significa que tudo deve partir da escuta da Palavra, pois é a escuta da Palavra que nos projeta para os outros e nos faz perceber o que Deus espera de nós.

O nosso tempo vive-se a uma velocidade estonteante… Para ganhar uns minutos, arriscamos a vida porque “tempo é dinheiro” e perder um segundo é ficar para trás ou deixar acumular trabalho que depois não conseguimos “digerir”. Mudamos de fila no trânsito da manhã vezes incontáveis para ganhar uns metros, passamos semáforos vermelhos, comemos de pé ao lado de pessoas para quem nem olhamos, chegamos a casa abatidos, enervados, vencidos pelo cansaço e pelo estresse, sem tempo e sem vontade de brincar com os filhos ou de lhes ler uma história e dormimos algumas horas com a consciência de que amanhã tudo vai ser igual… Claro que estas são as exigências da vida moderna; mas, como é possível, neste ritmo, guardar tempo para as coisas essenciais? Como é possível encontrar espaço para nos sentarmos aos pés de Jesus e escutarmos o que Ele tem para nos propor?

Nas nossas comunidades cristãs e religiosas, encontramos pessoas que fazem muitas coisas, que se dão completamente à missão e ao serviço dos irmãos, que não param um instante… É ótimo que exista esta capacidade de doação, de entrega, de serviço; mas não nos podemos esquecer que o ativismo desenfreado nos aliena, nos massacra, nos asfixia. É preciso encontrar tempo para escutar Jesus, para acolher e “ruminar” a Palavra, para nos encontrarmos com Deus e para perceber os desafios que Deus nos lança. Sem isso, facilmente perdemos o sentido das coisas e o sentido da missão que nos é proposta; sem isso, facilmente passamos a agir por nossa conta, passando ao lado do que Deus quer de nós.

Este é um tempo privilegiado para invertermos a marcha alienante que nos massacra. Que este tempo não seja mais uma corrida desenfreada para lugar nenhum, mas um tempo de reencontro, com a nossa família, com os nossos amigos, com Deus e com as nossas prioridades. A oração e a escuta da Palavra podem ajudar-nos a rever a nossa vida e a redescobrir o sentido da nossa existência.

Qual é a nossa perspectiva da hospitalidade e do acolhimento? Esta leitura sugere que o verdadeiro acolhimento não se limita a abrir a porta, pedir para entrar; ligar a televisão e correr para a cozinha para lhe preparar um banquete; mas o verdadeiro acolhimento passa por dar atenção àquele que veio ao nosso encontro, escutá-lo, partilhar com ele, a fazê-lo sentir o quanto nos preocupamos com aquilo que ele sente…

A atitude de Jesus - que, contra os costumes da época, aceita Maria como discípula - faz-nos, mais uma vez, pensar nas discriminações que, na Igreja e fora dela, existem. Fará algum sentido qualquer tipo de discriminação, à luz das atitudes que Jesus sempre tomou?

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